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Marco Civil da Internet e PL 2630: Necessidade de nova lei ou fortalecimento da existente?
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) é a principal legislação que regula o uso da internet no Brasil, estabelecendo direitos, deveres e princípios para usuários, provedores de serviços e governos.
Ele aborda questões como neutralidade da rede, privacidade, liberdade de expressão e responsabilidade dos provedores de aplicações de internet. Um dos pontos mais relevantes é a forma como ele trata a responsabilidade das big techs e a produção de conteúdo em suas plataformas.
Responsabilidade das Big Techs no Marco Civil
O Marco Civil da Internet estabelece que:
Responsabilidade sobre conteúdo de terceiros:
- As big techs, enquanto provedores de aplicações, não são responsáveis diretamente pelo conteúdo gerado por terceiros em suas plataformas.
- A responsabilidade só se configura se, após ordem judicial específica, o conteúdo ilegal não for removido. Essa determinação protege a liberdade de expressão, mas ao mesmo tempo cria um desafio na remoção de conteúdo prejudicial em tempo hábil.
Armazenamento de dados:
- As big techs devem guardar os registros de conexão e acesso a aplicações por prazos específicos, respeitando os direitos de privacidade e a proteção de dados pessoais.
- Esses dados só podem ser fornecidos mediante ordem judicial, o que estabelece um equilíbrio entre segurança pública e privacidade.
Neutralidade da rede:
- As empresas não podem discriminar ou degradar o tráfego de dados na internet. Isso impede práticas como priorizar serviços próprios em detrimento de concorrentes.
Direitos dos usuários:
- As plataformas devem ser transparentes em suas políticas de uso, garantindo direitos básicos como privacidade, liberdade de expressão e proteção contra práticas abusivas.
Produção de Conteúdo e Moderação
A produção de conteúdo na era digital tem gerado debates sobre os limites da liberdade de expressão e o papel das big techs como moderadoras:
Moderação e censura:
- As big techs têm autonomia para criar políticas de uso que proíbam conteúdos considerados prejudiciais (como discursos de ódio ou desinformação), mas enfrentam críticas por possíveis arbitrariedades na aplicação dessas regras.
- A ausência de um padrão global sobre o que pode ser moderado levanta questões sobre transparência, equilíbrio e o risco de censura.
Fake news e desinformação:
- O Marco Civil não trata diretamente de desinformação, mas as plataformas são pressionadas a atuar contra a disseminação de notícias falsas.
- O PL das Fake News (Projeto de Lei 2630/2020) busca complementar o Marco Civil, impondo maior responsabilização às big techs na identificação de conteúdos falsos.
Monetização de conteúdo:
- A relação entre plataformas e produtores de conteúdo também está no centro do debate, com discussões sobre a remuneração justa por conteúdos gerados por terceiros.
Correlação entre Marco Civil da Internet e a PL 2630/2020
A correlação entre o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e o Projeto de Lei nº 2630/2020 (conhecido como PL das Fake News) suscita uma análise técnica e jurídica sobre a necessidade de novas legislações ou o reforço das já existentes. Ambos os textos abordam questões cruciais da governança digital, mas apresentam diferenças em seus escopos e objetivos.
Marco Civil da Internet
- Criado como a “Constituição da Internet Brasileira”, o Marco Civil regula direitos e deveres de usuários, provedores de serviços e governos.
- Principais pontos relevantes:
- Neutralidade da rede.
- Privacidade e proteção de dados.
- Responsabilidade limitada das plataformas por conteúdo de terceiros, condicionada à ordem judicial.
- Liberdade de expressão como princípio central.
- Garantia de armazenamento e acesso a registros de conexão sob condições específicas.
PL 2630/2020
- O PL das Fake News surgiu em resposta à crescente preocupação com desinformação, distribuição de conteúdo falso e discursos de ódio.
- Propostas principais:
- Obrigações mais rígidas para plataformas na identificação e mitigação de conteúdos falsos ou nocivos.
- Transparência de algoritmos e moderação de conteúdo.
- Rastreabilidade de mensagens em plataformas de mensageria.
- Previsão de penalidades administrativas para o não cumprimento de suas normas.
Necessidade ou redundância jurídica?
O argumento central da sua questão reside em saber se o PL 2630 é de fato necessário ou se os problemas que ele pretende resolver poderiam ser sanados com a implementação rigorosa do Marco Civil.
Sobreposições entre o Marco Civil e o PL 2630
- Liberdade de expressão: Ambos estabelecem diretrizes para proteger a liberdade de expressão. O Marco Civil já proíbe remoções arbitrárias de conteúdo, enquanto o PL 2630 insere regras mais rígidas sobre transparência nas decisões de moderação.
- Responsabilização das plataformas:
- Marco Civil: Define a responsabilidade limitada, condicionada à ordem judicial.
- PL 2630: Amplia essa responsabilidade, especialmente para combater desinformação, mas potencialmente contradiz o Marco Civil ao propor sanções administrativas sem ordem judicial.
- Proteção de dados: O Marco Civil já aborda a guarda de registros e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) complementa essa proteção. O PL 2630 adiciona exigências sobre rastreabilidade de mensagens, gerando debate sobre invasão de privacidade.
Lacunas e Controvérsias: O que o PL 2630 tenta preencher e os desafios enfrentados
Embora o Marco Civil da Internet tenha sido pioneiro ao estabelecer princípios fundamentais para o uso da internet no Brasil, ele apresenta limitações em lidar com alguns dos desafios contemporâneos, especialmente relacionados à desinformação e à transparência nas plataformas digitais.
Desinformação em massa:
- O Marco Civil não contém mecanismos específicos para lidar com campanhas organizadas de desinformação, um fenômeno que se tornou uma ameaça crescente em redes sociais e aplicativos de mensagens.
- O PL 2630 busca preencher essa lacuna, propondo medidas para identificar, mitigar e combater a disseminação de informações falsas. No entanto, enfrenta críticas quanto à sua falta de clareza operacional e ao potencial risco de censura, uma vez que critérios mal definidos podem restringir a liberdade de expressão.
- Não há exigência no Marco Civil para que plataformas revelem como seus algoritmos funcionam, especialmente no que diz respeito à priorização ou supressão de conteúdos.
- O PL 2630 aborda essa questão ao propor maior transparência, obrigando as big techs a explicitar os critérios utilizados em suas recomendações e distribuições de conteúdo.
Transparência de algoritmos:
- Não há exigência no Marco Civil para que plataformas revelem como seus algoritmos funcionam, especialmente no que diz respeito à priorização ou supressão de conteúdos.
- O PL 2630 aborda essa questão ao propor maior transparência, obrigando as big techs a explicitar os critérios utilizados em suas recomendações e distribuições de conteúdo.
Apesar de suas intenções de enfrentar problemas significativos, o PL 2630 tem gerado controvérsias que colocam em xeque sua viabilidade e alinhamento com o Marco Civil.
Uma das principais preocupações é o possível conflito com o Marco Civil. Existe o receio de que o PL 2630 crie uma sobreposição de normas que enfraqueça a previsibilidade jurídica estabelecida pelo Marco Civil. Isso é especialmente sensível nos aspectos relacionados à liberdade de expressão e à responsabilidade limitada das plataformas, que são pilares fundamentais da legislação atual.
Outro ponto de crítica é o excesso de regulação. Muitos especialistas argumentam que a criação de novas leis pode aumentar as incertezas e complexidades jurídicas desnecessariamente. Em vez disso, defendem que os problemas poderiam ser solucionados com uma aplicação mais rigorosa e consistente das normas já existentes, como o Marco Civil e a LGPD, evitando a sobrecarga normativa.
Por fim, o impacto na liberdade de expressão é uma preocupação central. O PL 2630 propõe regras que, dependendo de sua aplicação e fiscalização, podem ser interpretadas como autoritárias ou difíceis de implementar. Isso pode resultar em censura arbitrária, comprometendo a liberdade de expressão e afetando negativamente a dinâmica democrática.
Reflexão Final: Nova lei ou melhor aplicação das existentes?
O Marco Civil da Internet, consolidado como um marco regulatório fundamental, estabelece princípios gerais que devem ser respeitados por quaisquer legislações complementares. Novas propostas legislativas, como o PL 2630, não podem contradizer seus fundamentos, especialmente no que diz respeito à liberdade de expressão e à responsabilidade limitada das plataformas, sob o risco de criar conflitos jurídicos.
Mais do que a criação de novas leis, o maior desafio reside na fiscalização e aplicação efetiva das normas já existentes, como o próprio Marco Civil e a LGPD. Para enfrentar os desafios do ecossistema digital atual, é necessário investir em infraestrutura regulatória e criar órgãos mais capacitados para lidar com abusos digitais.
Além disso, nenhuma legislação será totalmente eficaz sem uma educação digital que capacite os usuários a identificar desinformação e a usar a internet de forma crítica e responsável.
O Marco Civil já oferece uma base sólida para regular a internet, e sua combinação com a LGPD potencializa sua eficácia. Novas leis só devem ser criadas para preencher lacunas técnicas intransponíveis dentro das normas vigentes. Antes disso, é crucial:
- Fortalecer a aplicação do Marco Civil e da LGPD, com mais investimentos em fiscalização.
- Atualizar o Marco Civil, se necessário, para responder aos desafios do cenário digital em constante evolução.
- Priorizar a educação digital e fomentar parcerias entre governo, big techs e sociedade civil para ampliar a transparência e combater abusos.
Portanto, a solução não está em criar uma legislação mais extensa, mas em assegurar que as leis existentes sejam cumpridas e, quando necessário, evoluídas de forma harmônica e integrada.
Os desafios incluem encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a responsabilidade de prevenir danos sociais, evitando práticas de moderação abusivas e garantindo maior transparência nos algoritmos. Por outro lado, as oportunidades estão em estimular colaborações eficazes entre as partes interessadas e ampliar o debate sobre a taxação das big techs, utilizando os recursos gerados para promover iniciativas de educação digital.
Em resumo, mais do que legislar, o momento exige ações concretas para implementar, aprimorar e fiscalizar o que já está definido.
Rodrigo Neves
Presidente Nacional da AnaMid
CEO da VitaminaWeb
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